Aspectos epidemiológicos do diabetes mellitus e seu impacto no indivíduo e na sociedade

01/01/2004 04:25

Capítulo 1

Dra. Sandra Roberta Gouvea Ferreira

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O diabetes mellitus tipo 2 (DM2) é considerado uma das grandes epidemias mundiais do século XXI e problema de saúde pública, tanto nos países desenvolvidos como em desenvolvimento. As crescentes incidência e prevalência são atribuídas ao envelhecimento populacional, aos avanços terapêuticos no tratamento da doença, mas, especialmente, ao estilo de vida atual, caracterizado por inatividade física e hábitos alimentares que predispõem ao acúmulo de gordura corporal.

A maior sobrevida de indivíduos diabéticos aumenta as chances de desenvolvimento das complicações crônicas da doença que estão associadas ao tempo de exposição à hiperglicemia. Tais complicações - macroangiopatia, retinopatia, nefropatia e neuropatias - podem ser muito debilitantes ao indivíduo e são muito onerosas ao sistema de saúde. A doença cardiovascular é a primeira causa de mortalidade de indivíduos com DM2; a retinopatia representa a principal causa de cegueira adquirida e a nefropatia uma das maiores responsáveis pelo ingresso a programas de diálise e transplante; o pé diabético se constitui em importante causa de amputações de membros inferiores. Assim, procedimentos diagnósticos e terapêuticos (cateterismo, bypass coronariano, fotocoagulação retiniana, transplante renal e outros), hospitalizações, absenteísmo, invalidez e morte prematura elevam substancialmente os custos diretos e indiretos da assistência à saúde da população diabética. Ainda, o DM é acompanhado de outras morbidades que podem tornar os custos totais exorbitantes.

Porém, hoje existem amplas evidências sobre a viabilidade da prevenção, tanto da doença como de suas complicações crônicas. O número de indivíduos com DM dá uma idéia da magnitude do problema e estimativas têm sido publicadas para diferentes regiões do mundo, incluindo o Brasil. Em termos mundiais, 135 milhões apresentavam a doença em 1995, 240 milhões em 2005 e há projeção para atingir 366 milhões em 2030, sendo que dois terços habitarão países em desenvolvimento (1,2), como mostra a figura 1.

Figura 1
Fig. 01 – Evolução do diabetes no mundo (2000 – 2030)
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No Brasil, o SUS (Sistema único de Saúde) vem progressivamente atendendo desde 1994 um número crescente de pessoas com DM. A figura 2 mostra a evolução destes atendimentos no período de 1998 a 2004.

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Fig. 02 – Evolução dos atendimentos do SUS no período de 1998 – 2004
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Dados sobre prevalência de DM representativos da população residente em 9 capitais brasileiras datam do final da década de 80 (3). Nesta época, estimou-se que, em média, 7,6% dos brasileiros entre 30 e 69 anos de idade apresentavam DM, que incidia igualmente nos dois sexos, mas que aumentava com a idade e a adiposidade corporal. As maiores taxas foram observadas em cidades como São Paulo e Porto Alegre, sugerindo o papel da urbanização e industrialização na patogênese do DM2, conforme mostra a figura 3.

 

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Fig. 03 – Prevalência do diabetes no Brasil conforme o Censo Nacional de Diabetes – 1986-1988
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Um achado relevante foi o de que cerca da metade dos indivíduos diagnosticados diabéticos desconhecia sua condição. Isso significa que os serviços de saúde têm diagnosticado casos de DM tardiamente, dificultando o sucesso do tratamento em termos de prevenção das complicações crônicas.

Infelizmente, as informações deste estudo multicêntrico sobre prevalência de  DM no Brasil não foram atualizadas. Dados representativos da população de Ribeirão Preto, interior de São Paulo, foram mais recentemente publicados (4), conforme mostra a figura 4.

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Fig. 04 – Prevalência de TGD e de DM no estudo de Ribeirão Preto
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Segundo os dados do estudo de Ribeirão Preto, a prevalência do DM, na faixa dos 30 aos 69 anos, foi de 12,1% (em comparação com o Censo Nacional de Diabetes de 1988, no qual a prevalência nessa mesma faixa etária foi de 7,6%) sugerindo que o DM deve estar se tornando mais prevalente, pelo menos na população adulta residente neste estado. Para uma estimativa mais atualizada da prevalência do DM numa determinada população, como num município, por exemplo, deve-se levar em consideração a prevalência média do DM em 3 faixas etárias: abaixo de 30 anos, entre 30 e 69 anos e com 70 anos ou mais, aplicando esses índices de prevalência às respectivas populações de cada faixa etária, conforme o último censo populacional do IBGE. Com esta metodologia de cálculo, utilizando-se a prevalência do estudo de Ribeirão Preto (12,1%) ao invés da prevalência do Censo Nacional de Diabetes (7,6%) para a faixa etária de 30 a 69 anos, o número estimado de portadores de DM no Brasil é de aproximadamente 10,3 milhões, conforme mostra a figura 6.

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Fig. 05 – Estimativa da população diabética em 2006 – Prevalência de 12%
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Dados ainda mais preocupantes têm sido relatados para um subgrupo da nossa população, o de ascendência  japonesa (5). Estes apresentam pelo menos o dobro da prevalência de DM quando comparado à população geral brasileira e os pesquisadores têm atribuído este fato tanto ao ambiente ocidental como à predisposição genética, conforme mostra a figura 6.

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Fig. 06 – Prevalência de diabetes em descendentes de japoneses vivendo no Brasil
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Com base nas estimativas e projeções sobre os números de indivíduos com DM e hipoteticamente considerando uma ocorrência constante da doença ao longo do tempo, a Sociedade Brasileira de Diabetes criou um “relógio” que continuamente alertaria sobre a ocorrência de novos casos de DM no mundo. Este contador pode ser visto na home page do site da SBD. Apesar das grandes limitações na criação deste relógio, é louvável a iniciativa de relembrar a todo o momento a relevância deste problema de saúde. Para 2006, estima-se que existam 11 milhões de brasileiros com DM (6).

Diante deste quadro alarmante sobre a situação do DM, tem-se buscado compreender causas ou fatores determinantes, passo fundamental na tentativa de reverter a progressão desta epidemia. Parte desta pode ser atribuída ao aumento global da expectativa de vida, observado inclusive no Brasil, segundo o IBGE. Isso tem ocorrido principalmente devido à redução da mortalidade infantil, o que também implica em aumento do percentual de casos de DM (7), de acordo com dados do censo de 2005, contidos no https://www.ibge.org.br, mostrados na figura 7.

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Fig. 07 – Expectativa de vida dos brasileiros
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Não cabe aqui citar os avanços na identificação de fatores causais do DM2, mas é fundamental que se reforce o papel definitivo do estilo de vida moderno que implica em acúmulo de adiposidade corporal, sendo especialmente deletério na região visceral. Como contraprova para a importância do estilo de vida para o risco de DM, estudos de grande porte, conduzidos em diferentes partes do mundo, provaram que hábitos de vida mais saudáveis (dieta balanceada, rica em fibras, visando peso corporal realisticamente adequado, associada à atividade física de, pelo menos, 150 minutos semanais) são capazes - em indivíduos pré-diabéticos - de reduzir seu risco de DM em 58% (8), conforme mostra a figura 8 que resume os resultados do estudo conduzido pelo Finnish Diabetes Prevention Study Group (DPS) sobre a prevenção do DM2 em pessoas com tolerância diminuída à glicose.

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Fig. 08 – Risco de desenvolver diabetes - Finnish Diabetes Prevention Study Group (DPS)
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Mais interessante ainda foi a observação no estudo desenvolvido pelo Diabetes Prevention Program Research Group, conduzido nos EUA, no qual a tentativa de prevenção farmacológica da doença, por meio da metformina, trouxe resultados piores que os observados com a mudança do estilo de vida, com reduções no risco de DM de 31% e 58%, respectivamente (9), conforme mostra a figura 9. Outros estudos de intervenção farmacológica, conduzidos em diferentes populações, empregando medicamentos destinados ao tratamento da obesidade ou do DM2, obtiveram sucesso na redução de risco, embora de magnitude inferior à alcançada com mudanças no estilo de vida.

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Fig. 09 – Eficácia das alterações do estilo de vida na redução cumulativa do diabetes
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A literatura dispõe de amplas evidências sobre a relevância do bom controle glicêmico e dos demais fatores de risco cardiovascular na prevenção das complicações. Em se tratando do DM2, o UKPDS, que no século passado questionou se a eficácia do controle glicêmico na preveniria as complicações crônicas diabéticas, foi, até certo ponto frustrante. Isto porque, apesar de comprovar significantes benefícios do controle da glicemia na prevenção da microangiopatia (retino e nefropatia) - à semelhança do previamente documentado em portadores de DM1 no DCCT (10) - não demonstrou redução de eventos cardiovasculares e morte (11). Ponderações sobre estes resultados foram diversas na literatura e as razões para tais achados foram em parte explicadas. A figura 10 resume os benefícios do controle da hipertensão e da glicemia em termos de redução relativa de complicações.

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Fig. 10 – Benefícios do controle da hipertensão e da glicemia sobre a ocorrência de complicações
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Outro marco importante na prevenção secundária foi a divulgação do estudo Steno-2 que convenceu a sociedade científica da necessidade de se tratar intensivamente os múltiplos fatores de risco (níveis glicêmicos, pressóricos, perfil lipídico e a microalbuminúria) para obter redução significante também dos eventos cardiovasculares e mortalidade em indivíduos com DM2 (12). Tal programa de tratamento intensivo dos múltiplos fatores de risco em pacientes com DM2 e microalbuminúria reduz o risco de eventos cardiovasculares e microvasculares em cerca de 50%, como mostra a figura 11.

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Fig. 11 – Resultados do estudo STENO 2: eficácia da abordagem intensiva
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Há consenso de que o indivíduo diabético é de altíssimo risco cardiovascular, comparável àquele não-diabético que já apresentou um infarto do miocárdio (13). O estudo de Haffner e colaboradores mostrou que a incidência de infarto agudo do miocárdio em indivíduos diabéticos sem história prévia de doença arterial coronariana (DAC) é similar àquela dos indivíduos não diabéticos com história prévia de DAC, conforme ilustra a figura 12.

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Fig. 12 – Incidência de infarto agudo do miocárdio em pacientes diabéticos com ou sem história prévia de doença arterial coronariana
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Dessa forma, justificam-se as metas rigorosas em termos de valores de glicemia (jejum e pós-prandial), hemoglobina glicada, pressão arterial e lipoproteínas estabelecidas por sociedades científicas como a SBD, American Diabetes Association (14) e American Heart Association.

O estudo DECODE avaliou a correlação entre a tolerância à glicose e a mortalidade, fornecendo convincentes evidências sobre a importância de se obter também a normalização da glicemia pós-prandial como uma das metas importantes para a redução do risco cardiovascular (15), como mostra a figura 13.

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Fig. 13 – Estudo DECODE: a importância da normalização da glicemia pós prandial
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Um dos grandes questionamentos atuais dos diabetologistas é o quanto abaixar a HbA1c para reduzir o risco de eventos cardiovascular. Estudos desenvolvidos (ACCORD, ADVANCE e VADT) para responder a esta questão trouxeram resultados preocupantes no sentido de relatarem até aumento na mortalidade cardiovascular com controle glicêmico rigoroso de indivíduos com DM2 de longa duração (16).

Referências Bibliográficas

  1. Wild S, Roglic G, Green A, Sicree R, King H. Global prevalence of diabetes. Estimates for the year 2000 and projections for 2030: Diabetes Care 27(5): 1047-53, 2004.
  2. Barceló A,  Aedo C, Rajpathak S, Robles S. The cost of diabetes in Latin America and the Caribean: Bull World Health Organ 81(1): 19-27, 2003
  3. Malerbi D, Franco LJ. The Brazilian Cooperative Group on the Study of Diabetes Prevalence. Multicenter Study of the Prevalence ofdiabetes mellitus and Impaired Glucose Tolerance in the urban Brazilian population aged 30-69 years: Diabetes Care, 15: 1509-16, 1992.
  4. Torquato MTCG, Montenegro Jr RN, Viana LAL, Souza RAHG, Lanna CMM, Lucas JCB et al. Prevalence of diabetes mellitus and impaired glucose tolerance in the urban population aged 30-69 years in Ribeirao Preto (São Paulo), Brazil: Sao Paulo Med J. 121(6): 224-30, 2003.
  5. Gimeno SGA, Ferreira SRG, Cardoso MA, Franco LJ, Iunes M. The Japanese-Brazilian Diabetes Study Group. Weight gain in adulthood and risk of developing glucose disturbance - a study of a Japanese-Brazilian population. J Epidemiol 10: 103-10, 2000.
  6. https://www.saude.gov.br/ visitado em 23/mar/2011
  7. https://www.ibge.gov.br/home/ visitado em 23/mar/2011
  8. Tuomilehto J, Lindstrom J, Eriksson JG, Valle TT, Hamalainen H, Hanne-Parikka P, Keinanen-Kiukaanniemi S for the Finnish Diabetes Prevention Program. Prevention of type 2 diabetes mellitus by changes in life style among subjects with impaired glucose tolerance: N Engl J Med 344: 1343-50, 2001.
  9. Diabetes Prevention Program Research Group. Reduction of the incidence of type 2 diabetes with life style intervention or metformin: N.Engl J Med 346: 393-403, 2002.
  10. The Diabetes Control and Complications Trial Research Group. The effect of intensive treatment of diabetes on the development and progression of long-term complications in insulin-dependent diabetes mellitus. N Engl J Med 329: 977-986, 1993.
  11. UK Prospective Diabetes Study (UKPDS) Group. Intensive blood glucose control with sulphonylureas or insulin compared with conventional treatment and risk of complications in patients with type 2 diabetes: Lancet 352: 837-853, 1998.
  12. Gæde P, Vedel P, Larsen N, Jensen GVH, Parving H, Pedersen O. Multifactorial Intervention and cardiovascular disease in patients with type 2 diabetes: N Engl J Med 2003, 348: 383-393, 2003.
  13. Haffner SM, D’Agostino Rjr, Mykkanen L et al. Insulin sensitivity in subjects with type 2 diabetes. Relationship to cardiovascular risk factors: the insulin resistance atherosclerosis study: Diabetes Care 22: 562-568, 1999.
  14. American Diabetes Association: Standards of medical care in diabetes. Diabetes Care 23 (suppl.1): S11-S61, 2010.
  15. Glucose tolerance and mortality: comparison of WHO and American Diabetic Association diagnostic criteria The DECODE study group on behalf of the Europe and Diabetes Epidemiology Group.  Lancet 354: 617-621, 1999.
  16. Riddle MC. Glycemic control and cardiovascular mortality. Current Opinion in Endocrinology, Diabetes & Obesity 18: 104–109, 2011.